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Canto magno de Maria Bethânia brilha no contraste entre a claridade e o breu que ilumina o álbum ‘Noturno’ | Blog do Mauro Ferreira

Canto magno de Maria Bethânia brilha no contraste entre a claridade e o breu que ilumina o álbum ‘Noturno’ | Blog do Mauro Ferreira

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♪ Álbum com a magnitude do canto de Maria Bethânia, Noturno se alimenta do contraste entre a claridade e o breu que move as onze músicas e o poema que compõem o repertório deste disco gravado pela artista sob direção musical do maestro baiano Letieres Leite, criador dos arranjos.

Luz de sol negro que irradia pelo Brasil os sentimentos contraditórios do mundo há seis décadas, o canto de Bethânia brilha em Noturno com a chama que pareceu ter baixado no álbum anterior da artista, Mangueira – A menina dos meus olhos (2019), tributo à escola de samba Estação Primeira de Mangueira conduzido à apoteose mais pelos arranjos de Letieres.

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Em Noturno, o canto da intérprete e os arranjos do maestro se ombreiam com a produção musical do baixista Jorge Helder. Diamante verdadeiro lapidado desde 1965, a voz de Bethânia alia à maturidade uma precisão que a permite delinear com nitidez o vaivém entre a luz e a treva que norteia o álbum Noturno – movimento ignorado na arte da capa branca e inexpressiva do disco que causou decepção entre os seguidores da artista.

A dramaticidade do canto permite a intérprete expor em Dois de junho (Adriana Calcanhotto, 2020) a escuridão que encobre as luzes do Brasil, país negro e racista em que dissonâncias como a morte do menino Miguel Otávio Santana da Silva (2014 – 2020) – filho da empregada doméstica Mirtes Renata Santana de Souza, morto por descuido da patroa da mãe, Sari Mariana Costa Gaspar Côrte Real – acontecem em cotidiano embrutecido pela injustiça social.

Em Dois de junho, a dona do dom de interpretar palavras e sentimentos alheios se apodera dessa canção que expõe desarmonia sublinhada pelo toque sujo das guitarras de Pedro Sá. A canção é de autoria de Adriana Calcanhotto, compositora de outra música, A flor encarnada, que faz o álbum Noturno desabrochar na escuridão – no caso, na treva de paixão que esmaga coração desiludido.

Maria Bethânia canta o samba ‘Cria da comunidade’ com Xande de Pilares — Foto: Jorge Bispo / Divulgação

Faixa previamente apresentada em 25 de junho como primeiro single do álbum Noturno, A flor encarnada é uma das quatro músicas que o repertório do disco herda do roteiro de Claros breus (2019), show no qual Bethânia já esboçou o desenho claro-escuro que ganha maior nitidez no disco.

Do show Claros breus, vem também o samba-canção Bar da noite (Bidu Reis e Haroldo Barbosa, 1953), rebobinado no disco em registro primoroso de voz e piano, o de Zé Manoel, no mesmo formato minimalista de A flor encarnada.

Em Bar da noite, Bethânia ecoa o canto grave de Nora Ney (1922 – 2003) enquanto sorve tristezas de amores, abrigada no refúgio dos corações afogados no álcool e no mesmo sertão de lágrimas que encharca A flor encarnada.

E por falar em sertão, vem de lá a poesia da grande música inédita do álbum, O sopro do fole, de Zeca Veloso, artista que já começa a se confirmar o grande compositor insinuado há quatro anos na apresentação da canção Todo homem (2017).

Ao cantar O sopro do fole, Bethânia aperta “os baixo” do coração, por sentir melancolia ao remoer o percurso feito por nordestinos rumo ao sudeste, sem perder a memória da festa, evocada pelo mesmo toque de acordeom – o do virtuoso Toninho Ferragutti – que acentua a tristeza embutida na faixa, também bordada pelo toque do violão de Pedro Franco.

O sopro do fole bafeja o mesmo suspiro de saudade que embasa o samba De onde eu vim, bela contribuição de Paulo Dáfilin para o repertório do disco. Só que a saudade, desta vez, soa sem melancolia. Até porque Bethânia veio da Bahia, terra alegre cujo dendê tempera esse samba que parece pisar em terreiros ancestrais na introdução marcada pela percussão do ritmista Marcelo Costa.

Música difícil de ser cantada pelas divisões inusitadas, o que somente reforça a luminosidade do canto de Bethânia aos 75 anos completados em junho (aliás, 74 anos, pois o disco foi gravado entre setembro e outubro de 2020), Lapa santa alude a Bom Jesus da Lapa (BA), município baiano banhado pelas águas do rio São Francisco, em cujas margens o povo brasileiro faz a festa e exercita a fé.

Perceptível já na introdução majestosa das cordas, a grandeza do arranjo de Letieres Leite evidencia o acerto do encontro entre a cantora e o maestro na louvação ao Velho Chico. Em paisagem mais seca e distante, banhada pela dor, Vidalita recusa a festa, imersa na resignação que acalenta essa canção flamenca da compositora catalã Maria Teresa Martín Cadierno.

Lançada em 2000 na voz da autora, artisticamente conhecida como Mayte Martín, Vidalita é veículo para a exposição da fina sintonia entre Bethânia e o violonista João Camarero, único músico da faixa. Resistindo à tentação do exibicionismo, Camarero recusa os clichês do flamenco ao manusear as sete cordas de violão, expressando com Bethânia o sentimento da canção em espanhol, idioma bissexto na discografia da cantora.

Em atmosfera vintage que remete aos sambas-canção pré-bossa nova dos anos 1940 e 1950, o bolero Prudência – composição feita por Tim Bernardes especialmente para Bethânia – retoma o clima à meia-luz dos bares em que os fracassados do amor se refugiam para expiar em bom português as dores do coração e do cotovelo.

Bordado de Maria Bethânia exposto no encarte da edição em CD do álbum ‘Noturno’ — Foto: Arte de Maria Bethânia

Herança do roteiro do show Claros breus, Música, música (Roque Ferreira) – originalmente grafada Músicas, música – reacende as luzes da fé no amor, com o violão virtuoso de João Camarero, mas sem a imponência no arremate da canção, como no show de 2019.

Já o percurso pelo subúrbio carioca no samba Cria da comunidade – gravado por Bethânia com intervenções vocais de Xande de Pilares, parceiro de Serginho Meriti nessa composição inédita em disco – é feito com luminosidade no canto da intérprete e na disposição das cordas, o que valoriza a faixa, compensando a falta de intimidade da cantora com a geografia desse samba carioca.

Outra herança do show Claros breus, a canção Luminosidade (Chico César) desloca o álbum Noturno para o interior do Brasil, evocado mais pelo sentimento do canto da intérprete do que pelo arranjo dessa canção de beleza inebriante que comprova ser Chico César um dos tradutores mais fiéis da alma musical de Maria Bethânia.

No fim, ao arrematar o álbum Noturno com a récita de trecho do poema Uma pequenina luz (1972), a intérprete se vale dos versos do poeta português Jorge de Sena (1912 – 1978) para reforçar o contraste entre a claridade e o breu, mote do disco.

Tudo ainda parece treva no Brasil de 2021, mas, no meio de nós, uma grandiosa luz brilha, irradiada por Noturno, álbum iluminado pela magnitude do canto de Maria Bethânia.





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